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A "escala residencial" na superquadra de Brasília: Paradigma ou mistificação?
The "Residential Scale" in Brasilia's Superquadra: Paradigm or Deception?
PALAZZO, Pedro Paulo^1^
SOLÓRZANO, Gabriel Ernesto Moura^2^
^1^ Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. [email protected]
^2^ Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Brasília. [email protected]
Recebido em __/__/2020. Aceito em __/__/__
# Resumo {.unnumbered} As superquadras que caracterizam a malha urbana de Brasília são definidas por Lucio Costa, *a posteriori,* como a "escala residencial" da cidade: um jogo de palavras que obscurece o entendimento de como se estrutura o tecido residencial da capital. Visando a perceber com maior clareza as relações de escala --- no sentido convencional, isto é, geométrico, da palavra --- na superquadra, abordam-se inicialmente as contradições inerentes à abstração espacial e discursiva no modernismo. Em seguida, analisam-se as relações de escala na área residencial de Brasília em três níveis sucessivos: as articulações de escala da unidade de vizinhança, os elementos de composição espacial na superquadra, e o papel dos edifícios na concretização das escalas e espacialidades peculiares ao urbanismo desta cidade. A cada passo, observa-se como as categorias interpretativas avançadas por diversos estudiosos de Brasília e da arquitetura moderna se articulam, nos seus esclarecimentos e contradições, com a abstração e ambiguidade espacial da superquadra. O conjunto assim indissociável de espaços e discursos sustenta o paradigma do habitar moderno, ao preço, porém, de se erigir um sistema de mistificações conceituais. **Palavras-chave:** Brasília (DF), Urbanismo modernista, Unidade de vizinhança, Morfologia urbana # Abstract {.unnumbered} The superblocks that characterize Brasilia's urban fabric are defined by Lucio Costa, *a posteriori,* as the "residential scale" of the city: a play on words that obscures a proper understanding of how the housing mass of the Brazilian capital is structured. In order to perceive more clearly the relations of scale --- in its conventional, that is, geometric, sense --- in the superblock, we begin by addressing the contradictions inherent in the spatial and discursive abstraction of modernism. From there, we analyze the scale relationships in Brasilia's residential area according to three successive scopes: the scale articulations around its neighborhood unit, the elements of spatial composition in the superblock, and the role buildings play in actualizing the scales and spatial relations peculiar to this city's urbanism. At each step, we note how the interpretive categories put forward by several scholars of Brasilia and of modern architecture come together, in their clarifications as well as contradictions, with the abstraction and spatial ambiguity of the superblock. The complex, thus made indivisible, of spaces and discourses upholds the paradigm of modern dwelling, yet this comes at the price of erecting a system of conceptual deceptions. **Keywords:** Brasilia (Brazil), Modernist urbanism, Neighborhood unit, Urban morphology
Brasília (DF) Urbanismo modernista Unidade de vizinhança Morfologia urbana
@costa:1974consideracoes
pt-BR

Introdução

Dentre os princípios que balizam o universo modernista, poucos gozam de acolhida tão ampla quanto o da unidade de vizinhança. Oriundo da prática (sub) urbanística norte-americana no início do século XX, é teorizado por Clarence Perry em 1929 (@fig:perry). Adquire pedigree na Europa sob o apogeu da cidade-jardim, no período entre guerras, e faz-se presente na revisão do urbanismo funcionalista em torno aos últimos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM), no imediato pós-guerra, para finalmente ser recepcionado no Novo Urbanismo, movimento formulado a partir de meados da década de 1970. Partindo da premissa formulada por Perry de que os bairros tradicionais são "defeituosos" [-@perry:1929neighborhood7, p. 27], o ideário do movimento Moderno leva a cabo uma reformulação integral não apenas da "vizinhança", mas também de suas componentes, como a quadra e o bloco edificado [@panerai:2013formas]. O resultado mais emblemático dessa reformulação, ao menos no âmbito da arquitetura erudita, é a superquadra de Brasília, concebida por Lucio Costa no Relatório do Plano Pilôto de Brasília (P.P.B.) vencedor, em 1957, do concurso para o projeto da nova capital federal.

Representação da unidade de vizinhança de Clarence Perry [-@perry:1929neighborhood7, p. 20] {#fig:perry width=12cm}

É na Superquadra que se manifesta de modo mais característico a modernidade que perpassa o projeto de Lucio Costa [@eldahdah:2005case], mais até do que na icônica esplanada dos Ministérios [@marquez:2009] ou do que na ambiência "bucólica" que o próprio Costa propõe como dimensão síntese do seu projeto [-@costa:1974consideracoes]. Esta releitura dos preceitos suburbanistas da unidade de vizinhança carrega consigo o "DNA" da Cidade Radiante corbusiana, aclimatada pelo racionalismo carioca, sintetizando assim a trajetória do urbanismo modernista [@ficher:2010modern]. No entanto, tal riqueza de paradigmas implica, para o seu estudo, o desafio de não recair em análises reducionistas [@holanda:2003determinacao]: Brasília põe em xeque as categorias tradicionais de produção e análise da cidade --- a sequência hierárquica de malha viária, parcelamento do solo e edificação, [@panerai:2006analise] ---, bem como as próprias dimensões de compreensão do espaço urbano [@holston:1989modernist].

A unidade de vizinhança de Brasília (@fig:uvrppb) é, ao mesmo tempo, elemento compositivo estruturante do desenho da cidade e núcleo da vida cotidiana. Por isso, uma discussão mais precisa da morfologia das superquadras, bem como das implicações de sua escala para a apropriação do usuário --- de modo semelhante ao que vem sendo debatido no tocante à metropolização da capital [@lima:2019brasilia10] e à extensa orla do lago Paranoá [@bercott:2017historia] ---, é crucial para a reflexão sobre a preservação do conjunto urbanístico de Brasília e sobre os rumos do pensamento modernista na contemporaneidade.

Lucio Costa, Unidade de vizinhança no Relatório do Plano Piloto de Brasília [-@costa:1957relatorio]{#fig:uvrppb width=12cm}

Este artigo tem o propósito de averiguar a aplicabilidade de certos procedimentos de classificação e avaliação do espaço aberto e de sua delimitação edificada nas superquadras que compõem o conceito de unidade de vizinhança em Brasília Para tanto, abordam-se as relações de escala nos diversos elementos e espaços que as conformam. Dessa proposta, emerge a questão: as peculiaridades metodológicas, pretensamente necessárias para se abordar a cidade modernista, se justificam pelas especificidades inerentes aos paradigmas modernos e de Brasília, ou trata-se de justificativas post facto --- discursos abstratos, ou mera mistificação modernista destinada a velar uma análise mais criteriosa de seu espaço urbano? Esses dois aspectos são discutidos segundo os elementos constitutivos da estrutura física do espaço e de suas relações geométricas, a fim de se alcançar uma leitura situando as escalas da Superquadra no discurso sobre morfologia urbana.

O desconforto acadêmico diante da especificidade modernista remonta aos primeiros ensaios de uma historiografia não militante do movimento Moderno. Segundo Alan Colquhoun, a arquitetura moderna se distingue da tradicional não tanto por suas tomadas de posição estéticas ou construtivas, mas sobretudo por uma nova e peculiar concepção do espaço.1 Tal formulação deixa claro que o modernismo se institui não como sucessão natural do "progresso da técnica" defendido por Lucio Costa [-@costa:2007documentacao], muito menos como internalização gradual do processo artístico e técnico, como proposto por Greenberg, mas como visão de mundo irredutível ao universo da arte tradicional e à historiografia desta mesma tradição. Enquanto visão de mundo, demanda adesão moral no lugar da crítica [@watkin:1977morality], e dá-se a ver por meio da exegese em vez da historiografia [@colquhoun:1981historicism].

Diante desse descompasso, a historiografia sobre a capital federal tem encontrado dificuldades metodológicas em confrontar a realidade material e espacial de Brasília, mormente na escala local de apreensão pelo pedestre. Em meio à profusão de estudos sobre o urbanismo modernista em geral e sobre Brasília em particular, há incerteza acerca do aparato crítico a ser adotado, bem como uma persistente tendência à abstração e frequente recurso a marcos conceituais a priori. Autores mais próximos --- cronológica ou ideologicamente --- à concepção da nova capital, tais como Gorovitz [-@gorovitz:1985brasilia] ou Carpintero [-@carpintero:1998brasilia], tendem a reportar seus argumentos à exegese do Relatório do P.P.B., tomando a resenha do discurso de Lucio Costa pela análise do projeto. Na crítica internacional, por outro lado, desde Bill e Zevi, antes da inauguração oficial da cidade,2 até Balducci [-@balducci:2010brasilia] e mesmo Koolhaas [@koolhaas:2016brasilia], prevalece o juízo normativo em que o modernismo europeu é tido como paradigmático, sendo a manifestação brasileira "um mero 'regionalismo' sem consequências" [como denuncia @katinsky:1985apresentacao, p. 8]; por vezes, o conceito de "teoria da modernização" [@heynen:1999architecture] é invocado como pretexto a semelhante eurocentrismo.

Em meados dos anos 1980, na esteira da campanha pela preservação do plano piloto e dos assentamentos pioneiros, toma corpo algo como uma escola brasiliense de estudos urbanos. Num primeiro momento versada em pesquisas sobre a "grande Brasília" metropolitana apontada por Paviani [-@paviani:2010ideologia; @saboia:2014brasilia] em análises de cunho geográfico assim como morfológico, vem revisitando desde então o tema da superquadra com sólidos estudos historiográficos [sem pretender a qualquer exaustividade: @leitao:2010infancia; @magalhaes:2009blocos, além dos demais trabalhos citados neste artigo].

A diversidade de abordagens historiográficas desse objeto multifacetado levanta a questão da legitimidade de metodologias analíticas; o sistema de "escolas" de morfologia urbana [@netto:2015fundamentos] não tem se debruçado de modo sistemático sobre o problema da cidade modernista em geral, e menos ainda sobre Brasília. No retrospecto de quase quatro décadas de pesquisas brasilienses sobre a morfologia urbana da capital, tem-se dado destaque, justamente, à insuficiência da normatividade da sintaxe espacial para esgotar os valores urbanísticos da cidade [@holanda:2002espaco] e à não replicabilidade do paradigma formal da superquadra no tecido metropolitano [@kohlsdorf:1989brasilia2]. Não deve surpreender, nesse contexto, que uma das principais contribuições desta escola brasiliense de morfologia urbana, por assim dizer, tenha sido o refinamento de instrumentos de análise local, como a topoceptividade [@kohlsdorf:1996apreensao], em detrimento do estudo global da malha.3

A "escala residencial" de Brasília: fragilidades de uma abstração

Tomando-se a concepção da cidade moderna por irredutível à da cidade tradicional, ganha precedência a sinalização conceitual da passagem do tempo na ideia de cidade em detrimento da apreensão sincrônica do espaço tangível da cidade --- a tal ponto que propor o inverso deverá então ser considerado, segundo Lefebvre, "como um indício de patologia social" [-@lefebvre:1968droit, p. 50]. Na formação assim historicizada do campo disciplinar urbanístico [@choay:1980regle], o discurso se sobrepõe, quando não se substitui, à existência física da cidade e à análise do seu espaço urbano.

Ora, a eliminação do respaldo da tradição, associada à abstração do discurso, demanda um novo modo de se alavancar os repertórios legitimadores das decisões projetuais [@coronamartinez:2000ensaio]. Na abstração do "planteamento racional dos problemas funcionais relativos" à obra modernista, portanto, triunfa o repertório-modelo em substituição aos tipos urbanos tradicionais [@argan:1966tipologia14, col. 14]. Outrossim, devido à primazia do discurso e da abstração, o recurso a um repertório legitimador --- repertório este que perpassa todo o texto do Relatório do P.P.B., de "Piccadilly circus" à "técnica oriental milenar dos terraplenos" [@costa:1957relatorio, p. 38] --- se dá por livre associação de ideias, não implicando efetiva semelhança visual, espacial ou funcional entre o projeto e seus modelos.

De igual modo, o discurso verbal sobre o projeto tangencia as definições convencionais de certos conceitos para postular, no lugar destas, um universo semântico particular; ironicamente, Stamo Papadaki, um dos jurados no concurso de Brasília, aponta com algum cinismo este perigo:

Mark Twain certa vez observou [...] que freqüentes mal-entendidos surgem do fato de que várias pessoas usam a mesma palavra com sentido diferente ou palavras diferentes para exprimir a mesma coisa. Tenho plena consciência dêste fato, já que se aplica particularmente ao terreno do urbanismo. [@papadaki:1957concurso, p. 22]

Cita-se amiúde o obscuro tratamento que Lucio Costa dá ao problema do "caráter monumental" em Brasília. Ele avança o espantalho retórico da "ostentação" a ser contrastado com a tergiversante "expressão palpável [...] daquilo que vale e significa" [@costa:1957relatorio, p. 34], para afinal de contas recorrer à provada e aprovada técnica Beaux-Arts de exprimir a monumentalidade por meio de relações contrastantes entre cheios e vazios [@marquez:2009, p. 45].

Anos mais tarde, Lucio Costa criará outro expediente conceitual sui generis na formulação do sistema das "quatro escalas de Brasília". Em Costa, o conceito de "escala" designa não a razão entre dimensões físicas dos elementos espaciais, mas categorias de leitura do seu projeto segundo o caráter geral das diversas áreas da cidade (@fig:aerea). Ele emprega a palavra "escala" para designar essas categorias pela primeira vez numa entrevista de 1961 ao Jornal do Brasil [@marquez:2009, p. 43]. No entanto, é somente em 1974 que ele sugere com maior clareza o sistema das quatro escalas. Finalmente, no artigo "Brasília revisitada" [-@costa:1987brasilia, p. 116], Costa será taxativo: "a concepção urbana de Brasília se traduz em quatro escalas: a monumental, a residencial, a gregária e a bucólica."

![Vista aérea da Asa Sul. As superquadras, no primeiro plano, pertencem à "escala residencial"; as "escalas" gregária e monumental são representadas pelas edificações da zona central, ao fundo; a "escala bucólica" perpassa as Asas residenciais e o parque, visível no plano intermediário. Foto: Sílvio Cavalcante [-@cavalcante:superquadras] ](http://www.jobim.org/lucio/bitstream/handle/2010.3/4194/III B 05-03929 L.jpg){#fig:aerea width=12cm}

Para se ter uma melhor noção do sentido peculiar conferido por Lucio Costa ao termo "escala", veja-se o que Philippe Boudon tem a dizer sobre proporção e escala:

[...] A escala pressupõe a medida de um edifício, ou de uma parte deste, com relação a um elemento exterior a ele [...] não se trata, neste caso, de um pensamento racional fundado sobre uma razão puramente numérica, cuja origem é o ratio ou relação matemática [...] não se trata, igualmente de uma medida do espaço verdadeiro, medida de proporções ou de partes de um edifício, relacionadas umas às outras. Trata-se de um pensamento do espaço arquitetural que o mede em relação a ele mesmo, mas que pressupõe uma definição do espaço arquitetural compreendendo, ao mesmo tempo, o espaço verdadeiro do edifício e o espaço mental do pensamento do arquiteto. [@boudon:1971lespace, p. 58--59]

Boudon descreve escala como uma relação entre dois elementos --- nesse caso o edifício e algum parâmetro exterior a ele --- podendo ser esse pessoa, cidade ou quarteirão. A partir da definição do parâmetro de comparação é possível avaliar uma eventual adequação ou rompimento com a escala adotada. As "escalas" de Brasília, nessa leitura, se afastam de qualquer relação entre objetos próximos, visualmente comparáveis, forçando os limites conceituais do "espaço mental do pensamento do arquiteto" rumo à abstração.

A relação entre o conceito convencional de escala e as "escalas" de Brasília é ambígua. Italo Campofiorito, ao transformar as palavras de seu amigo Lucio Costa em decreto de preservação da cidade [@distritofederal:1987decreto10829], trata cada uma das quatro escalas como meramente sinônimo de um "setor" urbanístico --- interpretação recepcionada na portaria do atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) n.° 314 [@ibpc:1992portaria314]. Por sua vez, Gorovitz, no seu livro de 1985 --- anterior, portanto, à afirmação categórica das escalas no "Brasília revisitada" --- adota a ambiguidade característica do discurso arquitetônico modernista. Sua tentativa de reconciliar a conceituação de "escala" sugerida por Costa com o sentido da mesma palavra segundo Boudon passa pelo problema de como determinar o caráter dos diferentes setores da cidade:

Em Brasília, o tratamento diferenciado das partes pressupõe valores externos mediados pelo conceito de escala e introduzidos por vontade deliberada do arquiteto, em função de opções particulares. [@gorovitz:1985brasilia, p. 28]

O único critério exposto com clareza nessa mediação das "partes" de Brasília por meio das "escalas" é, portanto, a liberdade de que goza o urbanista para estipular os parâmetros do seu projeto. Assim, ao mesmo tempo em que reconhece a determinação externa exercida por fatores culturais sobre a arquitetura de Lucio Costa, Gorovitz atribui ao arquiteto o poder demiúrgico de, por sua vez, determinar de todo a definição e o modo de apropriação de tais fatores [@gorovitz:1985brasilia, p. 54].

A interpretação de Gorovitz parece sugerir que a apreensão das "escalas" de Brasília se dá na confrontação entre os diferentes setores, confrontação esta que se torna possível tão somente pelo percurso "nas pistas centrais de velocidade" do eixo Rodoviário [@costa:1957relatorio, p. 34]: perspectiva tornada ainda mais explícita pela preocupação em "garantir a ordenação urbanística" das superquadras sobretudo no "segundo plano e como que amortecido na paisagem" vista desde o eixo rodoviário [@costa:1957relatorio, p. 42].

Desta feita, a experiência pedestre e local dentro da unidade de vizinhança escapa à possibilidade de confrontação de escalas, a não ser por uma operação mental de resgate da memória espacial vivenciada em outros setores da cidade --- memória, é certo, facilitada pela configuração pregnante da cidade [@holanda:2010brasilia, p. 90]. As "escalas" assumem sua condição de artefatos de uma compreensão intelectualizada de Brasília, em oposição à experiência geométrica do espaço imediatamente presente. Cabe indagar a seguir, portanto, quais sejam as relações de escala efetivamente experimentadas na superquadra.

Escala como articulação espacial na unidade de vizinhança

A unidade de vizinhança de Brasília é composta por um sistema escalonado de quatro superquadras. À semelhança do conceito suburbanista de Perry e das cidades-jardim [@holanda:2011ponte, p. 40], Costa prevê que cada superquadra seja equipadas com jardim de infância, escola primária, banca de revistas na via de entrada e comércio local contíguo aos seus limites. Equipamentos de maior abrangência, como escola secundária, cinema, clube e igreja pertencem ao âmbito da unidade de vizinhança. Os blocos residenciais, livremente alocados nos limites do cinturão verde, constituem os únicos espaços de propriedade privada dentro da superquadra --- ainda assim, com térreo de livre circulação ---, sendo sempre abraçados pelas áreas de uso coletivo. A configuração aberta das "Asas" residenciais faz com que as unidades de vizinhança se interpenetrem, não havendo compartimentação estrita entre cada uma. No entanto, apenas a unidade composta pelas quadras 107, 108, 307 e 308 da asa Sul (@fig:esquema) afigura-se completa, contendo todos os equipamentos urbanos previstos no Relatório do P.P.B.

Esquema da unidade de vizinhança de Brasília. Desenho: Gabriel Solórzano{#fig:esquema width=12cm}

A unidade de vizinhança tem como objetivo promover o convívio a partir das relações cotidianas, assim como em bairros de cidades tradicionais, oferecendo um sistema autossuficiente onde todos os serviços necessários para o dia a dia --- como escola e comércio --- estejam a uma caminhada de distância, sem a travessia de vias de circulação pesada ou veloz. As quadras são equivalentes em significado e funcionalidade, desde seu papel no desenho urbano quanto aos serviços específicos. A pretensão de acessibilidade pedestre estabelece, portanto, um parâmetro externo à vontade do urbanista: um limite prático tanto em termos de medidas absolutas --- na unidade concebida por Perry, é um círculo com 400 metros de raio, tendo dimensão semelhante a unidade de vizinhança de Brasília --- quanto da imposição de barreiras, como as pistas de alta velocidade.

O acesso às quadras se faz através de um sistema de hierarquia viária decrescente, em árvore. Esta organização materializa o sentido de transição da monumentalidade, que se espalha da esplanada dos Ministérios pelas longas vistas desimpedidas do eixo Rodoviário, para o caráter residencial da unidade de vizinhança, marcado por vias locais de baixa velocidade. A conexão é percebida de modo privilegiado por meio do transporte motorizado, havendo pouco interesse em propiciar efeitos de proporcionalidade na escala do pedestre:

O "certo modo monumental" e a urbanidade que distingue as UVs decorrem das conexões pelas quais as partes interagem estruturando o projeto. Essas conexões comparecem tanto nas disposições funcionais --- a implantação e o dimensionamento, como nas de ordem estética --- as relações de proporcionalidade da composição plástica. [@ferreira:2009invencao, p. 9]

Tais conexões conferem um caráter homogêneo e basilar às unidades de vizinhança, definindo-as como elemento estruturante e ordenador da cidade, não apenas no que diz respeito ao seu desenho, mas também à articulação de atividades --- mesmo que algumas das funções educacionais e de lazer originalmente previstas em torno às superquadras hoje se desenvolvam predominantemente em outros setores de Brasília. Reciprocamente, o comércio local acabou por adquirir um caráter mais regional, expandindo a área de influência da unidade de vizinhança.


Se há, nessas articulações, um ponto de contato do entendimento das relações geométricas de escala entre elementos justapostos com as "escalas" enquanto categorias de leitura do P.P.B., este ponto se encontrará justamente na unidade de vizinhança. A superquadra, com seus edifícios habitacionais emoldurados pelo cinturão verde, é o local por excelência onde a "escala residencial" é perpassada pela "escala bucólica", dando pleno sentido como em praticamente nenhum outro ponto desse conjunto urbanístico.4 Observe-se, contudo, que em 1961 Costa ainda não articulou o princípio de penetração da "escala bucólica" nas demais, ou, como se prefira dizer, o seu papel de transição entre escalas e elementos:

É o jogo de três escalas que vai caracterizar e dar sentido a Brasília ... a escala residencial ou quotidiana ... a dita escala monumental, em que o homem adquire dimensão coletiva; a expressão urbanística desse novo conceito de nobreza ... Finalmente a escala gregária, onde as dimensões e o espaço são deliberadamente reduzidos e concentrados a fim de criar clima propício ao agrupamento ... Poderemos ainda acrescentar mais uma quarta escala, a escala bucólica das áreas abertas destinadas a fins-de-semana lacustres ou campestres. [Lucio Costa em entrevista ao Jornal do Brasil, 8 de novembro de 1961, apud @baratto:2019escalas]

No contexto da superquadra, as relações de escala geométrica entre edifícios, cinturão verde (@fig:alameda) e os vãos do sistema viário têm papel preponderante na afirmação do caráter cotidiano e acolhedor do local, onde se deixa para trás os grandes espaços dominados pelo automóvel e este se encontra, nos dizeres do Relatório do P.P.B., "domesticado" como "membro da família" (antropomorfização visionária, que prenuncia o estilo de vida sobre rodas da burguesia brasiliense!).

Alameda pedestre no cinturão verde da superquadra 308 Sul. Foto: Gabriel Solórzano, 2020{#fig:alameda width=12cm}

O cinturão verde serve, em primeira instância, para mascarar os edifícios --- Costa já antevê, desde 1957, o frustrante percurso do "modernismo periférico" [@kohlsdorf:2009brasilia] na produção arquitetônica corriqueira, bem como a futilidade de se esperar o devido controle administrativo sobre a estética das construções de Brasília [@perpetuo:2018origens10]. Mais ainda, percebem-se aí os ecos do debate em torno do Grande Hotel de Ouro Preto quase duas décadas antes [@comas:2010passado]: entre uma obra de arte, sempre bem-vinda em qualquer contexto, sem embargo de sua escala ou estilo, e um estorvo edilício, não há meio-termo possível; não se concebe um "segundo plano" edificado neutro, mediano, despretensioso, que não precise ser ocultado.

O niilismo desse dilema escancara as limitações práticas do discurso que relativiza a apreensão visual das escalas geométricas em favor de exercícios intelectuais abstratos. A recusa em se explicitar parâmetros compositivos incidentes sobre os blocos da superquadra, para além do meramente cartorial --- seis pavimentos sobre pilotis, normas burladas em dois tempos pelo mercado imobiliário [@ficher:2009analise] --- deriva, é claro, do conceito idealista de arte como criação livre de regras, resultando no "anticânone" modernista [@zevi:1973linguaggio].

Apesar do favorecimento a uma perspectiva motorizada na apreensão do significado simbólico de Brasília, Gorovitz [-@gorovitz:1985brasilia] debulha o espaço interno à unidade de vizinhança também de acordo com sua percepção estética local, na escala do pedestre. As disposições funcionais por ele citadas são representadas pela implantação dos blocos, comércios e equipamentos atinentes à unidade de vizinhança, e pelo dimensionamento das superquadras em relação a seus habitantes.

Machado, entretanto, observa que as disposições pretensamente "funcionais" se originam de experimentos gráficos realizados no Departamento de Urbanismo da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap). À exceção dos equipamentos com vocação regional, implantados nas entrequadras que margeiam cada unidade de vizinhança, não é possível restituir qualquer processo decisório "funcional" na configuração das implantações e dimensionamentos dos seus blocos e equipamentos [@machado:2007superquadra].

Superquadra como elemento de composição

Tal constatação não exclui, é verdade, uma leitura não funcionalista da implantação e do dimensionamento da superquadra, até porque a superquadra se encontra, segundo Holanda [-@holanda:2018espaco, p. 327], "entre as versões mais 'suaves' do genótipo moderno" em termos de configuração espacial e distribuição de usos. É esta leitura não funcionalista que propõe ainda Gorovitz, ao estabelecer oito "disposições de ordem estética" com nítida inspiração humanista --- poderíamos chamá-las, com mais propriedade, de instrumentos de composição. São estas: partido; axialidade; eurritmia; comodulação e proporção; simetria; traçado regulador; isonomia e ubiquidade; e modenatura (@fig:gorovitz).

Instrumentos de composição propostos por Gorovitz para analisar a superquadra, adaptados pelos autores deste artigo. Desenho: Gabriel Solórzano, 2019{#fig:gorovitz width=16cm}

Dessas oito "disposições", algumas pertencem à esfera da reflexão conceitual sobre os valores abstratos do P.P.B.: é o caso do partido, entendido como princípio de coesão entre as partes que são compreendidas como um todo; expressão concreta desta coesão é a homogeneidade --- um tanto ilusória --- de gabarito, densidade e arborização: este é o princípio de isonomia e ubiquidade. Quanto aos seis outros instrumentos de composição, eles têm em comum o fato de serem aplicáveis tanto às articulações entre superquadras contíguas quanto à estruturação do desenho urbano como um todo. A obra de Gorovitz dedica-se exaustivamente a esta segunda categoria, pelo que serão agregadas a seguir breves observações sobre as articulações locais.

A axialidade, caracterizada em termos estruturantes pela disposição das quadras em renques paralelos ao eixo Rodoviário, oferece na escala local um marco à eurritmia: relação de encadeamento das quadras. A presença bucólica contígua à residencial cumpre aqui um papel de mediação imediatamente apreendido, fazendo assim plenamente jus à nomenclatura de "escalas". As alamedas ortogonais dos cinturões verdes que delimitam as superquadras se prolongam a perder de vista, integrando as unidades de vizinhança entre si. A aproximação gradual, da perspectiva motorizada àquela peã, do tráfego em velocidade rápida à permanência no lugar, vai trazendo gradualmente para o primeiro plano os elementos particulares das relações de escala no interior da unidade de vizinhança. Ao panorama rodoviário, com blocos quase inteiramente camuflados pelas copas das árvores sucede o panorama pedestre, conferindo clareza e orientabilidade por meio das relações de escala.

A superquadra é o módulo que ordena a trama dos setores residenciais da cidade, agrupando-se em unidades de vizinhança, mediante comodulação e proporção. Quatro superquadras, dispostas num retângulo com aproximadamente 700 por 600 metros de lado --- a modularidade não é exata e as dimensões variam segundo a curvatura das Asas ---, são intercaladas por ruas comerciais curtas e descontínuas e por "entrequadras" --- extensas áreas para equipamentos cívicos e coletivos. A disposição em cremalheira das ruas comerciais e das entrequadras, espécie de modenatura dos elementos urbanísticos, faz com que o espaço da unidade de vizinhança seja fluido, cada superquadra podendo pertencer a duas unidades de cada vez. A unidade é, portanto, percebida abstratamente, por meio do seu uso, ao passo que as relações proporcionais e modulares dos elementos que a compõem --- superquadra, rua comercial e entrequadra --- são objeto de percepção visual e fenomenológica mais direta.

Certos pontos da unidade de vizinhança são privilegiados no tocante à percepção tanto da axialidade quanto da comodulação e proporção das superquadras. Trata-se, mormente, das esquinas internas do cinturão verde, onde se cruzam as alamedas retilíneas e de onde a vista abarca, simultaneamente, as quatro superquadras, uma rua comercial e uma entrequadra. A unidade formal das superquadras, conferida pela cota de coroamento dos blocos periféricos e pelo cinturão verde, contrasta com a diversidade de configurações possíveis para os equipamentos das entrequadras.

Curiosamente, porém, se a comodulação e proporção podem ser experimentadas com maior clareza no âmbito local e do ponto de vista do pedestre na unidade de vizinhança, o inverso ocorre com a simetria e o traçado regulador do sistema. O cruzamento dos eixos de simetria da unidade, de onde seria, também, possível apreender com maior clareza o rigor geométrico do traçado regulador, é fenomenologicamente virtual: situa-se no centro da rotatória que distribui a circulação local de veículos, espaço não acessível ao pedestre e amiúde obstruído com massas arbustivas e arbóreas. Seria este mais um caso de contradição entre o caráter pretensamente claro e racional do discurso verbal, de um lado, e a apreensão visual e espacial da forma urbana, do outro? Ou trata-se de ambiguidade esperada num plano piloto que assume, ainda que implicitamente, as incongruências intencionais e as vistas recortadas do paisagismo pitoresco [@cardoso:2012jardins]?


Na urbanização tradicional, o traçado viário e o parcelamento do solo são exatamente complementares: a rua e a praça são os espaços vazios resultantes da consolidação de edificações ou, quando muito, de divisas de lotes claramente demarcadas. Para Krier [-@krier:1988architectural], a praça tradicional é um espaço fortemente pregnante, delimitado por edificações ao redor de um vazio. Há um alto grau de restrição nos percursos possíveis no seu perímetro, minimizando a superfície externa de contato com outras ruas e espaços abertos. Organizada a circulação de pedestres e veículos geralmente ao longo do perímetro --- constatação formulada por Sitte exatamente quando as preocupações rodoviaristas começam a se impor sobre a criação de "lugares" [@sitte:1901staedtebau], o centro da praça adquire frequentemente um valor simbólico.

Ao destruir a compacidade do quarteirão delimitado pela malha viária, o urbanismo modernista esgarça este contato e introduz uma dificuldade de conceituação dos espaços intersticiais que vão se abrindo [@panerai:2013formas]. A "liberação do chão", de inspiração corbusiana, afasta fisicamente as edificações da malha viária --- veicular ou pedestre --- e, na ânsia de tornar invisível o parcelamento urbano, deixa indefinido o caráter e a destinação das extensões de solo público que se abrem entre vias e edificações. A superquadra é resultado desse urbanismo modernista, onde os edifícios são objetos escultóricos em meio ao espaço fluido. Áreas ostensivamente intituladas como "praças" são desprovidas da tradicional delimitação espacial por meio de massas edificadas; em contraste, lugares, via de regra internos à superquadra, que efetivamente são constituídos e delimitados, não recebem o nome de "praças", mas funcionam espacialmente como tais (@fig:espacos).

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Sistemas espaciais da superquadra: espaço contínuo modernista e espaço-figura tradicional. Desenho: Gabriel Solórzano, 2020 {#fig:espacos width=0}

Dois sistemas espaciais coexistem no interior da superquadra e são percebidos em alternância. De um lado, o espaço contínuo na superfície do solo perpassa as áreas pavimentadas e gramadas, e atravessa os pavimentos térreos dos blocos sobre pilotis. Este sistema deriva da formulação primordial, já apontada acima, do senso espacial modernista, representado na cidade Radiante de Le Corbusier, mas também, em menor escala, na indeterminação de ambientes do pavilhão da Alemanha na exposição de Barcelona (1929), por Mies van der Rohe. No pós-guerra, arquitetos europeus como Yona Friedman e Candilis-Josic-Woods exploram o contraste entre o espaço homeotrópico modernista e o seu ordenamento por meio de rígidos arcabouços geométricos subjacentes, abstratos ou materializados em megaestruturas; já Lucio Costa se mantém fiel ao cânone corbusiano, propondo uma suave fluidez espacial, pontuada de modo pitoresco por elementos paisagísticos.

Por outro lado, basta alçar os olhos para as massas arbóreas e as superfícies verticais das fachadas dos blocos, ou mesmo deparar-se com uma barreira topográfica, para descobrir o segundo sistema espacial Emergem volumes espaciais dotados de uma geometria visual mais ou menos clara, interpenetrando-se sem perder sua identidade formal. Ora as proporções desses espaços são extremamente esgarçadas, devido à grande distância entre blocos, reduzindo a pregnância dessas formas volumétricas; ora os blocos são dispostos tão próximos uns dos outros que se constituem ruas--corredor fortemente imagéticas e remansos protegidos. As transições entre espaços assim definidos traz ecos distantes das articulações de praças medievais caras a Camillo Sitte, mas antecede a reabilitação teórica deste urbanista austríaco em algumas décadas [@kohlsdorf:2005presenca].

Em torno à edificação

Os percursos descritos anteriormente buscam ilustrar momentos de mudança de paisagem percebidos pelas pessoas desde o contato visual com um edifício até o seu interior. Nesse processo podem ser percebidas algumas formas de interação entre o usuário e o espaço público --- com ênfase à maneira como as pessoas agem sobre determinados elementos --- especialmente àqueles que se identificam e se apropriam com ele. Essas relações foram estudadas por Herman Hertzberger e elaboradas a partir da comparação entre espaços que estão em uma esfera particular e pública. O edifício, materialização do espaço privado dentro da Superquadra, é o elemento central sobre o qual orbitam os conceitos apresentados por Hertzberger [-@hertzberger:1999licoes].

O bloco residencial, enquanto realidade física, se relaciona com o usuário de diferentes modos: delimitação espacial, como plano de fundo para quem circula no espaço aberto da Superquadra e define seus espaços e limites, espaço de passagem e abrigo transitório contra a chuva ou o sol, ou moldura da paisagem vista de dentro para fora, por intermédio de suas janelas e sacadas. Em todas essas funções, os blocos de Superquadra evidenciam mudanças de relações a depender da escala de interação com o usuário. Desde a dinâmica dos espaços gerados a partir da disposição desses blocos dentro dessa moldura que é a Superquadra, até o entendimento individual e seu relacionamento com o bem público.


No Relatório do P.P.B., o leito carroçável é não-lugar por excelência: eixo de trânsito em alta velocidade ou acesso local para serviço e abastecimento, Costa não lhe atribui explicitamente quaisquer qualidades espaciais no texto.5 O interior da superquadra, tal como representado em croquis por Lucio Costa, é (intencionalmente?) ambíguo quanto à existência de um leito carroçável pavimentado e diferenciado com respeito à superfície genérica do solo. As vias mais nitidamente demarcadas, como a rua comercial ou os estacionamentos entre blocos (@fig:corredor), deveriam ter marcado caráter de "fundos".

Rua-corredor configurada entre os fundos de três blocos residenciais da superquadra Sul 314. Foto: Gabriel Solórzano, 2020 {#fig:corredor width=12cm}

O tropismo da rua--corredor tradicional acaba, todavia, por se impor sobre a intenção do urbanista; seja por atavismo espacial ou estético dos usuários, seja por mera conveniência de circulação automobilística, as lojas do comércio local voltam-se invariavelmente para a rua de acesso, como o fazem as guaritas de portaria dos blocos e, em edifícios mais recentes, mesmo as fachadas. Nessa escala, começa a observar-se, portanto, uma reversão total da lógica urbanística do P.P.B.: as oportunidades e demandas atinentes às próprias edificações adquirem a capacidade de determinar a configuração e apropriação do espaço público (@fig:cls).

Territorialização do espaço entre o renque do comércio local e o cinturão verde da superquadra Sul 315. Foto: Gabriel Solórzano, 2020 {#fig:cls width=12cm}

Esta mudança se inicia com a afirmação de territorialidades privadas sobre o espaço público imediatamente circundante às edificações. Ao longo das duas últimas décadas, cafés e restaurantes vêm "redescobrindo" os atrativos do acesso, mesmo que secundário, pelo cinturão verde e pedestre das superquadras. No entanto, tal movimento deve-se em grande parte à já citada separação espacial entre vias e tecido edificado: extensas faixas de espaço indefinido passam, assim, a sofrerem delimitação territorial --- um dos conceitos de Hertzberger --- por parte do comércio, de modo mais ou menos permanente, como esplanadas de consumação.

Semelhante territorialização ocorre também no interior da superquadra. É a partir desses limites --- nem sempre claros --- que se baseiam as relações entre o usuário e o espaço. Essa relativização do seu caráter depende de parâmetros como o grau de acesso ou forma de supervisão daqueles que o utilizam e de quem se responsabiliza por ele. Isso quer dizer que tanto um espaço aberto quanto fechado podem ser concebidos como área pública ou privada dependendo desses tratamentos. Não é difícil identificar essas gradações. O acesso é o principal fator que nos permite perceber essas transições. Em uma Superquadra o cinturão verde demarca uma fronteira, assim como o pilotis no caso dos edifícios. A transição entre o público e o privado é gradual graças a esses elementos.

Essa possível ambiguidade entre o domínio público e o privado dentro de uma Superquadra --- muitas vezes reforçada pela inexistência de barreiras bem delimitadas --- causam duas reações antagônicas igualmente prejudiciais ao espaço comunitário. Ao entrar no território de uma quadra o usuário percebe que há um certo grau de apropriação do lugar por parte dos moradores. O espaço, apesar de público, é tratado como uma extensão da área de influência dos edifícios. Por outro lado, esses mesmos moradores que se apropriam de algumas áreas e as privatizam de acordo com seus interesses, não sentem obrigações com aquilo que está além da fronteira por eles estabelecida. Surgem assim vácuos dentro da quadra e lugares nos quais ninguém se identifica, tornando-se território de ninguém.


A delimitação territorial é associada à diferenciação territorial: quando um acesso determina o quão público um espaço pode ser. No contexto da superquadra, essa diferenciação é visível especialmente no âmbito do automóvel, quando seu acesso único é restrito a uma única via. Para o pedestre essa diferenciação deve ser percebida apenas pela disposição dos edifícios e seus espaços resultantes. Um conjunto de construções paralelos aos limites de uma quadra podem ser entendidos como barreiras ou portas de entrada para um espaço onde a percepção do que é público já não é mais a mesma, enquanto espaços amplos aumentam a sensação de um lugar público.

Na prática, porém, amplos e cambiantes processos de diferenciação territorial são levados a cabo pelos condomínios residenciais por meio do paisagismo. O zoneamento territorial é onde "o caráter de cada área dependerá em grande parte de quem determina o guarnecimento e o ordenamento do espaço, de quem está encarregado, de quem zela e de que é ou se sente responsável por ele" [@hertzberger:1999licoes, p. 22]. Na superquadra, o zoneamento assume a forma de um horror vacui, a rejeição da indefinição geométrica e visual do espaço fluido modernista.6

Essa rejeição se opera em dois níveis. Primeiro, pelo estabelecimento de Intervalos --- o espaço, entendido como extensão geométrica tangível, de transição entre o público e o privado, o encontro entre a rua e o particular. É a condição espacial para o encontro e o diálogo entre áreas de ordens diferentes, o espaço de boas vindas e despedias. São espaços de acomodação entre dois mundos. Na concepção da superquadra, os espaços de transição eles são diluídos, dando ao usuário uma suave mudança entre esses momentos. Esse fenômeno está presente desde a hierarquização das vias, que vão diminuindo a velocidade a medida que nos aproximamos das residências, como também no universo da Superquadra, onde o pilotis, as guaritas e as áreas comuns dos pavimentos são nos preparam para essa mudança. No entanto, a ocorrência cada vez mais frequente de taludes, desníveis, rampas em incorporações imobiliárias recentes tem contribuído para tornar os intervalos uma presença marcante nas superquadras.

Por fim, no estágio mais explícito de territorialização, ocorrem demarcações privadas no espaço público. A partir do conceito de intervalo entende-se que não há uma divisão rígida entre o público e o privado, permitindo, assim, que espaços públicos possam sofrer interferências. Essa relação pode ser positiva enquanto o caráter da área não se altere, ou seja, o público permaneça acessível a todos. É comum, porém, que condomínios expandam sua esfera de influência sobre a área pública, com justificativas variadas e assumindo formas diversas. Hortas, jardins comunitários e espaços de convivência --- exemplos corriqueiros de demarcações privadas geralmente bem aceitas na percepção comunitária --- são muitas vezes ofuscados por simples demarcações de canteiros que canalizam o acesso de pedestres ao pilotis em percursos claramente delimitados e facilmente vigiados (@fig:bloco).

Demarcação privada no espaço público em frente a um bloco residencial da superquadra. Foto: arquivo Iphan [-@iphan:2015superquadra, p. 23] {#fig:bloco width=12cm}

É necessário fornecer espaços públicos com os quais a comunidade possa se sentir responsável, promovendo uma identificação e contribuição por parte dos usuários. Existe, porém um paradoxo com o conceito de bem-estar coletivo, onde um sistema é imposto à sociedade. Essa relação acaba subordinado as pessoas que acabam não se identificando com esse padrão. Os problemas começam no momento em que as escalas começam a ficar grandes demais, quando a manutenção de um espaço não pode mais ser dada àqueles que estão diretamente relacionados com ela, criando a necessidade de uma organização que nem sempre representará os interesses coletivos, mas seus próprios. O sentimento de responsabilidade se torna distante, já que o indivíduo torna-se cada vez mais irrelevante na medida em que as instâncias vão se tornando mais e mais burocráticas. Os habitantes da cidade tornam-se estranhos em seu próprio ambiente de vida.

Conclusão

Brasília tem sido "explicada", desde há décadas, a partir da aplicação sui generis e apropriação do conceito de escala. Alguns elementos de composição são componentes chave da estruturação urbana e qualidade estética da cidade, permeando entre as escalas e permitindo que os habitantes tenham uma relação harmônica com as diferentes dimensões da cidade. Essa relação entre escalas não acontece apenas no que diz respeito às grandezas que orquestram a vida do brasiliense descritas por Lucio Costa, mas também no cenário cotidiano representada pela relação dos moradores com o ambiente ao seu redor. A Superquadra e seus edifícios formam um conjunto que representa essas duas relações de escala. A primeira é parte estruturante do desenho e organização da cidade, enquanto o bloco é a principal forma de interação entre o pedestre e essa organização. As relações tornam-se cada vez mais ricas a medida que o ser humano é utilizado como parâmetro, simbolizado pela dinâmica entre o morador e o edifício.

Em Brasília, a superquadra é o local onde as pessoas exercem sua influência sobre o espaço a partir do sentimento de pertencimento e zelo dos moradores. Existem algumas exceções como quadras funcionais que, por seu caráter transitório, não provocam em seus moradores a vontade de se apropriar do espaço. Esse limite bem determinado gera potenciais problemas, como os espaços de interseção acabam se tornando lugares sem dono, com os quais ninguém se sente responsável. Os fundos do comércio da Asa sul são um exemplo de espaço relegado ao limbo: concebidos para serem as calçadas de acesso principal às lojas, não pertencem à superquadra, sendo também renegados pelo próprio comércio; quando são apropriados como esplanadas gastronômicas, porém, também geram desconforto devido à territorialização do espaço.

Esses exemplos mostram que em uma superquadra --- por se tratar de um espaço que permite constantes transições --- os termos público e privado nem sempre são os mais adequados. É mais pertinente dizer que os espaços livres de uma quadra, assim como o pilotis, são semi-privados ou semipúblicos. Nessa lógica é visto como legítimo o uso do espaço público pelos moradores para seus próprios interesses e apenas indiretamente ao interesse dos outros. O caráter público do espaço é, assim, constantemente posto à prova não apenas nas intervenções físicas sobre a paisagem, mas também nos percursos implícitos. A dinâmica entre aproximações e distanciamento entre os elementos que compõem a cidade e a Superquadra em relação aos moradores que o que torna a cidade tão rica em diversidade espacial e qualidade estética. É válida a analogia de que quanto maiores os espaços e construções, menores são as pessoas. Assim como quanto maior for a presença do morador, menores são os objetos com que ele interage.

Ao tratar de Brasília, essa comparação não se limita ao meio físico, mas atinge ao simbólico por meio de relações abstratas e da apropriação de discursos. O diálogo entre experiência direta do espaço e mediação pelo discurso expõe dificuldades interpretativas e incoerências no desempenho dos lugares: contradições dialéticas inerentes ao confronto de uma criação autoral, concebida segundo um sistema moral e teleológico dado, com a multifacetada realidade do crescimento e consolidação da cidade real. O papel da crítica, neste caso, será, como propôs Manfredo Tafuri [-@tafuri:1980sfera], o de sempre chamar a atenção para a efetiva operação dos paradigmas arquitetônicos na realidade, dissipando a mistificação discursiva sempre que esta obscurecer a percepção de suas próprias contradições.

Referências bibliográficas {.unnumbered}

Footnotes

  1. Antes mesmo de figurar na história da arquitetura moderna escrita por Colquhoun [-@colquhoun:2002modern], esta afirmação seria repercutida por Reyner Banham [-@banham:1967theory].

  2. Tem-se em mente aqui o Congresso Internacional Extraordinário de Críticos de Arte, realizado em Brasília em 1959, no qual Max Bill e Bruno Zevi protagonizaram polêmicas invectivas contra o projeto de Lucio Costa.

  3. A este propósito, uma das mais influentes pesquisas em sintaxe espacial desenvolvidas em Brasília, por Valério Medeiros [-@medeiros:2013urbis], passa ao largo das questões específicas do urbanismo modernista.

  4. Com a possível exceção da vista que se tem, desde o guarda-corpo da plataforma sobre a estação rodoviária, abarcando a esplanada dos Ministérios --- "escala monumental" --- emoldurada pelo vazio verde da "escala bucólica". Ver @cruz:2016arquitetura.

  5. As "alças" viárias na estação rodoviária e o sistema de viadutos para saída dos eixos são as exceções que, pela sua fixação na logística do transporte mais do que pela fruição do espaço, confirmam esta assertiva.

  6. As questões de segregação social e retração da vida pública, conquanto relevantes para o processo de territorialização e zoneamento da superquadra, demandam um arsenal metodológico inteiramente diverso daquele atinente a este artigo.