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O Catetinho e o ideal modernista de espontaneidade

Uma obra pioneira

O Catetinho, também conhecido como Palácio de Tábuas, e oficialmente designado Residência Presidencial 1 (RP--1), se situa a cerca de 20 quilômetros ao sul da área central da capital federal. A sua construção é decidida em outubro de 1956 --- antes mesmo da abertura do concurso para o plano urbanístico de Brasília --- num encontro informal de executivos e colaboradores da recém-criada Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap), dentre os quais o arquiteto Oscar Niemeyer, os engenheiros Juca Chaves e Roberto Magalhães Penna, e o jornalista César Prates, além do poeta Dilermando Reis, amigo pessoal de JK [@prates:1983catetinho, 23]. O Catetinho é a primeira edificação diretamente concebida pela Novacap na campanha de construção de Brasília. Isto lhe confere um status pioneiro nas crônicas dessa campanha, devidamente explorado por Prates na sua condição de diretor de relações públicas da Novacap e lembrado por Rodrigo Mello Franco de Andrade por ocasião do tombamento do Catetinho [@iphan:1959catetinho, fl. 19].

Na história de Brasília, autoimagem por excelência do movimento Moderno brasileiro, o caráter pioneiro do Catetinho se torna um suporte privilegiado para a elaboração de narrativas heroicas e mitos fundadores, geralmente amparados em anedotas de escasso amparo documental e numa compreensão lacunar do próprio processo construtivo ou da utilização do palácio de Tábuas. Destacamos o valor arquitetônico atribuído ao caráter pretensamente espontâneo, quase irrefletido, do projeto e da construção do palácio de Tábuas, bem como a sua associação com o mito de JK na sua persona de "presidente bossa nova".

O projeto de Niemeyer para a edificação é, de fato, sumaríssimo: uma anedota pretende que o arquiteto o tenha elaborado numa mesa de bar [@guimaraes:2014construcao]. A obra emprega materiais recolhidos junto à Fertisa, empresa pertencente a Magalhães Penna, em Araxá: tijolos, ladrilhos, telhas onduladas, cimento, tinta, tábuas e tarugos em madeira de ipê --- essência nativa do Brasil central, usada à época para todo tipo de construção de pequeno porte, inclusive estruturas provisórias e formas ---, além de equipamentos sanitários e elétricos. A logística de remessa dos materiais, num único transporte por caminhão, desmente o conceito de um projeto meramente esboçado: de fato, um conjunto de desenhos técnicos será conservado até 1996 junto ao processo de tombamento do Catetinho, data em que a íntegra do processo é extraviada [@iphan:1959catetinho].

O partido do Catetinho consiste numa releitura em madeira dos edifícios em lâmina esbelta sobre pilotis, paradigmáticos da arquitetura do racionalismo carioca desde a década de 1930. A distribuição rígida dos seis aposentos e bar no primeiro pavimento, ocupando toda a extensão de um mesmo lado da varanda--corredor, entre duas empenas laterais cegas e coberta com uma meia-água, retoma o partido já empregado por Niemeyer no Grande hotel Ouro Preto, em 1938 (@fig:ghop).

Oscar Niemeyer. Grande hotel Ouro Preto, 1938. Foto: Pedro P. Palazzo, 2007{#fig:ghop}

Niemeyer antecipa assim, no Catetinho, uma solução que será pouco depois consagrada nos blocos habitacionais das mais antigas superquadras de Brasília: o corredor comum posicionado ao longo de uma das fachadas, com a escada formando um volume externo à lâmina principal (ver @fig:intro). Entre um e outros, uma série de edifícios provisórios concebidos por Niemeyer nos canteiros de obras de Brasília --- do primeiro terminal do aeroporto a escolas primárias --- constitui um ciclo de variantes em torno do partido arquitetônico do Catetinho [@iphan:2017catetinho, 37].

A falta de preocupação com a durabilidade do edifício é evidente na ausência de detalhamento construtivo ou de refinamento na execução da estrutura e dos acabamentos. Os esteios realizados com tarugos aparafusados são diretamente engastados no radier, sobre o qual se assenta, também, um pequeno depósito em alvenaria de tijolos, único contraventamento originário da edificação. As vigas, também em tarugos aparafusados, formando perfis irregulares, são fixadas excentricamente sobre os esteios (@fig:pilotis) e sustentam diretamente o assoalho de tábuas. A cobertura é uma simples retícula de ripas e caibros bastante espaçados entre si, pousando sobre as paredes em tábuas do pavimento superior.

Pilotis do Catetinho. Foto: P.P. Palazzo, 2016{#fig:pilotis}

Espontaneidade na arquitetura moderna brasileira

A obra é executada entre outubro e novembro de 1956 (@fig:out56). Segundo Niemeyer [@niemeyer:2006minha], o espírito da implantação do Catetinho é "entusiástico", conduzido mais por um ímpeto do momento e pela força de vontade dos envolvidos do que por um efetivo planejamento. A simplicidade do projeto e a rapidez de construção --- proverbiais "dez dias" registrados na placa comemorativa do tombamento do Catetinho , mas na realidade entre duas e três semanas [@iphan:2017catetinho, 26] --- participam de uma narrativa recorrente no modernismo brasileiro: a de que a forma arquitetônica "correta" surge de um ímpeto criativo espontâneo e irrefletido. Deve-se a Lucio Costa a primeira formulação discursiva dessa teoria, no influente artigo Documentação necessária [@costa:2007documentacao], e também a ele a sua expressão mais famosa, nas linhas de abertura do seu Relatório do plano pilôto de Brasília vencedor do concurso para o projeto da nova capital: "Não pretendia competir e, na verdade, não concorro --- apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada mas surgiu, por assim dizer, já pronta" [@costa:1957relatorio, 33].

Catetinho em construção na última semana de outubro de 1956. Fotógrafo desconhecido. Arquivo Público do Distrito Federal (ArPDF), acervo Novacap D4.4.b2 514{#fig:out56}

A ética de afetar espontaneidade vem, para Costa, associada desde o início a uma estética da materialidade rústica. Da apropriação da técnica vernácula como um ready-made no projeto não executado para a vila operária da Belgo Mineira em Monlevade [@correia:2003modernismo] à "composição pitoresca de estilo campestre" no Park hotel São Clemente, em Nova Friburgo [@comas:2010arquitetura11], Costa estabelece um influente paradigma que postula a arquitetura moderna enquanto cosa mentale abstrata, aplicável a qualquer sistema construtivo, mais do que expressão dos "materiais e métodos do nosso tempo" [@lecorbusier:1929architecture]. O rústico fica, então, curiosamente associado ao pioneirismo do moderno. Não é por acaso que Rodrigo Mello Franco de Andrade, discursando no ato de recebimento do Catetinho como patrimônio nacional, em 1959, identifica o palácio de Tábuas com "a origem rústica e quase humilde da magestade [sic] da nova capital" [@iphan:1959catetinho, f. 19].

Telma de Barros Correia enxerga na plasticidade rústica favorecida por Costa uma referência intencional ao arquétipo do colonizador português "maleável" em Gilberto Freyre [@correia:2003modernismo, 84]. Podemos ampliar essa associação, tendo o ideal modernista de espontaneidade como contrapartida ao conceito freyreano de "homem cordial", ou seja, que se rege pela emoção irrefletida [@freyre:2003casagrande]. O ideal de espontaneidade da arquitetura racionalista carioca se rebate, por sua vez, na estética do improviso na bossa nova, estilo musical por excelência dos "anos dourados". A aproximação entre JK, a bossa nova e o Catetinho será um tema desenvolvido à exaustão na literatura cronística sobre o palácio de Tábuas.

JK é apresentado como o moço interiorano, filho de Diamantina, e ao mesmo tempo como o "presidente bossa nova". César Prates, diretor de relações públicas da Novacap, trata de associar o Catetinho a essa dúplice persona presidencial, fazendo do palácio de Tábuas o recanto das serestas e da bossa nova. Pouco importa se, na realidade, JK raramente pernoita no Catetinho [@prates:1983catetinho, 43], o qual termina por servir como moradia e local de trabalho para os próprios executivos da Novacap. Prates oficializa a narrativa presidencial graças às visitas ao Catetinho do seresteiro Dilermando Reis e dos ícones da bossa nova, Tom Jobim e Vinicius de Moraes [@francisco:2004catetinho, 20]. A canção Água de beber, presumivelmente inspirada no olho d'água vizinho ao palácio de Tábuas, imortaliza essa narrativa.

Improviso é, naturalmente, a característica principal na construção do Catetinho, devida seja à necessidade da ocasião, seja a uma afetação ideológica. Os frugais recursos materiais empregados na obra têm um efeito multiplicador na vulnerabilidade intrínseca à sua sumária concepção arquitetônica. Esta é desprovida de detalhes construtivos capazes de proteger o palácio de Tábuas da degradação ambiental ou mesmo de interações deletérias dos seus próprios materiais construtivos uns com os outros (@fig:contraventa).

Vista lateral do contraventamento em tábuas na empena do Catetinho. M.M. Mennucci, 2017{#fig:contraventa}